Entrevista com Tatá Aeroplano
(Corpo Elétrico #1, 2020)
por Ormando zhiOmn e Fernanda Pacheco
Tatá Aeroplano é um mister, um lírico, um místico, um bardo pós-moderno que escreve e canta, e toca e dança, e produz e anda, e é o criador ou veículo através do qual passam os personagens Frito Sampler, Canga Louca, J Birinight…
E isso não é tudo!… Com Tatá não chegamos ao fim, estamos no meio, estamos no meio e em meio a muitos: muitos seres visíveis e invisíveis, insetos, répteis, entidades da natureza, ventos e sons selvagens…
Em maio de 2020 o Aeroplano lançou mais um álbum pelo selo não identificado: “Voador Discos”. Perguntamos para ele sobre isso, e sobre muito mais...
Boa leitura… 🙂
Hey, misssterrr! Conta pra gente sobre o novo disco? Sobre o nome, as músicas, as fotos e o designs, as parecias…
É um presente conviver e fazer música no estúdio Minduca. Foram 5 discos em parceria com Bruno Buarque, Dustan Gallas, Junior Boca e Lenis Rino, mais o “Vida Ventureira”, em parceria com a Bárbara Eugênia, também gravado com a mesma galera.
Um pedaço da existência dedicada a mergulhar com essa galera num universo infinito de sons, formas, dimensões, conversas e vivências. A gente vai virando música aos poucos e essa sensação foi bem presente na feitura do novo disco que ganhou nome de “Delírios Líricos”.
Entrei no estúdio Minduca em agosto do ano passado com Bruno, Dustan, Boca e Lenis para registrar novas canções. Malu Maria, Bárbara Eugênia, Biba Graeff e Beto Lanterna participam desse novo ciclo.
A maioria das músicas foram criadas um mês antes, em julho. Uma dose de “Pisco”, uma birita que rola no Chile e no Peru, abriu um novo portal. Eu tinha um roteiro de canções pra gravar, e acabei compondo tantas canções que eu mudei tudo o que estava programado.
Abri o coração para a nova leva de canções elevei pra banda. Como a gente tem muita afinidade, foi delícia gravar esse novo material. Canções com letras e melodias que vieram de uma vez só, fui capturando tudo e colocando no papel.
Uma das músicas do disco, “Cabeças Cortadas”, foi composta na semana da gravação, dentro do estúdio. Arranjamos e ela acabou no disco.
Esse álbum teve muito de gravar violão e voz junto com o baixo, uma pegada mais intimista, mais orgânica. Depois desenrolamos os arranjos coletivos e os sintetizadores do Dustan Gallas, um jardim com lindas melodias vindas dos sintetizadores.
Assino todas as faixas, exceto “Ressurreições” que é uma parceria do Jorge Mautner com Nelson Jacobina que eu tive a felicidade de regravar.
As fotos do disco foram feitas pelo amigo Luiz Romero no sítio da Tixxa, minha mana. Passamos dois dias por lá,fazendo umas caminhadas, cozinhando, colhendo frutas e fazendo fotos.
O projeto gráfico ficou por conta do Fernando Maranho, parceiro da Cérebro Eletrônico e Jumbo Elektro.
Como é ser um músico em 2020, com a internet, os smartphones, e tudo que isso trouxe?
A partir dos anos 2000. A música começou a viver fortemente o lance todo da internet. Site, e-mail, napster, mp3 e o início das redes sociais, eu escutei a palavra “Orkut” no dia 02 de Julho de 2003, dia do primeiro show da história da banda Jumbo Elektro que rolou na casa underground Torre do Doutor Zero.
A internet mudou nossa forma de viver e divulgar a música. Uma transformação completa em movimento constante. É um lance muito vivo e infinito.
2020 também chegou colocando a gente pra repensar a existência, uma mudança e tanto na forma de ver e existir no mundo, estamos vivendo tempos difíceis, de um retrocesso inacreditável com o sucateamento da cultura vindo desse novo antigoverno federal.
Hoje converso com muitos amigos pelo whatts, acompanho as lives de várias galeras. Estou vivendo intensamente esse universo das redes de uns tempos pra cá. É um aprendizado sempre.
Você já lançou um disco em “dupla” (com a Bárbara Eugênia) e faz muitas parcerias… Como é pra você criar em dupla e em grupo? Como é fazer colaborações?
Comecei a compor sozinho desde pequeno. Já tinha mais de 50 canções quando em 1997 fui convidado pra entrar numa banda autoral, que posteriormente ganhou nome de “Gorpiava”.
Os meninos me chamaram pra ser vocalista e ajudar a colocar letras e melodias em algumas músicas que eles estavam arranjando. Surgiram as primeiras parcerias e foi um momento mágico, de entrega para nascerem músicas com uma banda inteira. Parceria é energia e desapego, deixar fluir para todos se conectam ao som criado, isso fez toda a diferença quando surgiu a banda “Jumbo Elektro” lá na frente.
Eu e o Fernando Maranho, fizemos parte da Gorpiava e depois começamos em São Paulo a Cérebro Eletrônico. Inicialmente em dupla e depois viramos banda, compondo muito em parceria nesses tempos. Nós acabamos criando também a banda “Jumbo Elektro” que como eu já disse, teve muitas músicas inteiras criadas coletivamente, isso foi fundamental para a energia que a banda levava pro palco, era inacreditável, todos possuídos pela magia do som.
O disco “Vamos Pro Quarto”, da Cérebro, foi todo composto coletivamente, gravado no Submarino Fantástico, com produção do Otávio Carvalho, o Ota também é meu parceiro nas gravações do Frito Sampler, fizemos três discos. O último “Telepathique Desorder” foi praticamente criado em parceria com os Hippie Hunters, a banda que acompanha o Frito e que é formada por Grace Ohio (Julia Valiengo), Moita Matos, Pedro Gongom, Otávio Carvalho e tem parcerias com Chicão, Malu Maria e Bárbara Eugênia.
Criar em grupo é muito bom, pois existe um espírito de coletividade, a gente vira alquimista mesmo, o que faz muito bem para as canções.
Os álbuns individuais que eu gravei são repletos de parcerias com Dustan Gallas, Junior Boca, Bruno Buarque e amigos queridos como Flávio Lima Retrofuturista, Gustavo Galo, Bárbara Eugênia, Juli Manzi, Julia Valiengo, Leo Cavalcanti, Malu Maria, Luiz Romero, Beto Antunes, Daniel Perroni Ratto, Alan Brasileiro, Meno Del Picchia, arrudA, Peri Pane, Juliano Gauche, Moisés Santana.
Recentemente acabei de terminar três canções, uma em parceria com André Mourão, que acabou de lançar uma bela canção chamada “Infinito Escuro” e duas com a Malu Maria e o mister Bode Bodão, músico e Dj residente da Nossa Casa Confraria de Ideias
Suas letras têm essa coisa mais humana, íntima, mas falam de uma realidade que é próxima e tátil também. A conjuntura social/política te influencia de alguma forma? Se sim, como?
Eu vivi com intensidade muitas conexões cósmicas durante a infância, um despertar de sentimentos difusos que estão comigo até hoje, mirando novas experiências espirituais e ancestrais.
Estamos vivendo uma era muito difícil, com o governo federal destruindo o setor cultural, um desmonte geral na cultura inacreditável, uma secretária inacreditável com comportamento nefasto, é muita tristeza.
Ontem mesmo sonhei que o governo tinha mudado e o Gilberto Gil tinha assumido novamente o ministério da cultura. Eu anoto os sonhos todos, acordei com sentimento de felicidade e quando me dei conta que era sonho, rolou aquele gelo na barriga, angústia por esses tempos que vivemos, o descaso total do governo federal com a pandemia, é a realidade bruta.
A gente busca força no coletivo, na cena, na espiritualidade, mudanças de hábitos pra continuar. A conjuntura social e política me influencia sim, não sei se isso acaba dentro das canções escritas, não consigo ter essa clareza, ou compreensão.
As canções que chegam, inconscientemente, são delírios utópicos, dialogam da sua maneira com a realidade social política. Existencialmente eu sinto muitas coisas que me tiram o chão vivendo os dias de hoje.
Desde pequeno, sentia incômodo com algumas coisas, não me enquadrava na escola, sentia uma brutalidade invisível, que não conseguia identificar, sempre fui muito observador e vivi a infância e adolescência, muito em silêncio, me debatendo, angustiado, não curtia o fato de ter, sido batizado recém nascido, a revelia, é um tipo de violência, as garras de uma sociedade extremamente machista, preconceituosa, organizada em torno da bíblia, da bala e do boi.
E dentro disso tudo, existe a ludicidade e um jeito muito bonito de fazer política. Adorei o clipe que o Juliano Gauche fez da canção “Alegre-se”, um jeito de colocar ternura na nossa existência cósmica.
A natureza guarda muitos segredos, a simplicidade desperta para momentos bonitos, mudar os hábitos, na alimentação, viver caminhadas infinitas, preparar a mente para voos, isso tudo é possível quando a gente vive o espírito em partículas não identificadas … as letras chegam de uma maneira inesperada … existir passa a ter sentido e não precisa explicar mais muita coisa.
Quais são as influências da literatura na sua arte e na sua vida?
Não consigo existir sem literatura. Eu sou os livros que leio e natureza que me cerca eu transformo em literatura visual, sonora e mental. É como se durante cada dia, eu construísse uma narrativa misturando tudo o que eu vivo, observo, leio, escuto, toco e tals.
Através da literatura, da poesia, da prosa, das biografias, entro em contato com espíritos muito antigos de espaços e formas diferentes, me torno cúmplice e parceiro de alguns deles, outras narrativas deitadas nas folhas que passam pelos olhos, melhoram o existir das entidades que vivem dentro de mim.
Existe liga nas folhas, nas folhas de relva, nas folhas que cantam com os ventos.
Dentro de um pedaço de papel, na tela do telefone ou no computador, é possível viver mil vidas, aplacar a angústia ou explodir com ela. Sentir a quentura, o amor, a raiva, a loucura e a paixão.
A literatura está em cada canção, o inconsciente mistura as vivências. A literatura me leva a sentir e viver coisas. Uma manifestação artística especial, pra gente sentar o corpo, relaxar a mente, e deixar de ser para entrar e viver o universo infinito daqueles que convidam a gente para a leitura.
Você se vê como cronista musical? Faz algum sentido pra você a coisa da narrativa?
Eu passo o tempo revisitando memórias. De pequeno fui guardando no espaço infinito do pensar os sonhos que eu tive, as coisas que vivi e as histórias que me contavam ou escutava de orelhada.
Passava tardes inteiras escutando minha mãe conversando com as amigas, tias, tios. Escutava os papos dos meus pais e adorava ficar na casa dos tios, tias, dos amigos. Cada casa guarda memórias e segredos, isso sempre me atraiu.
Quando eu ia dormir, isso com três, quatros anos de idade eu ficava lembrando as primeiras lembranças da minha existência, era uma pira muito louca, porque eu fazia isso quase toda noite pra pegar no sono. Aprendi a escrever, e fui registrando no papel essas memórias, os sonhos e as primeiras letras que chegaram com melodia.
Foi um lance consciente inconsciente de viver capturando tantas lembranças e existências, eu fui aprendendo a contar histórias através de algumas canções, fragmentos de coisas que eu vivi, escutei, me contaram. Misturadas, elas voltam do inconsciente em forma de canções.
No seu site tem alguns textos que você publicou durante alguns anos*… como é para você escrever?
* após essa pergunta ter sido feita e respondida o mister Tatá voltou a publicar textos no site dele! É com o coração em festa e com grande alegria que compartilhamos o link no fim da entrevista…
A primeira coisa que eu fiz quando aprendi a escrever foi registrar as primeiras letras que eu compus com melodias e alguns sonhos que marcaram o início da infância.
Escrever é voar, é convidar a alma pra dançar, é mergulhar fundo, visitar as sombras, correr com elas. Escrever é voar, é sentir, é vida e morte, o vazio, o despensar, despencar no abismo, acompanhar a lógica, ou não.
Eu aproveitei as redações escolares para incorporar sentimentos, as notas baixas eram inevitáveis, então entendi duas coisas, não dava pra eu emplacar meus pensamentos naquelas redações e então fazia uma redação para a escola e quando pintava uma inspiração eu capturava no papel e guardava com os primeiros escritos.
Eu desenhava bastante, criei personagens, criei argumentos e fiz um gibi inteiro num caderno de 150 páginas, ficava numa pasta junto com as letras de música, sonhos e crônicas, eu guardava secretamente no meu quarto. Essa pasta desapareceu, morava com mais três irmãos e nunca consegui saber o que aconteceu, nem meus pais, nem meus irmãos assumiram ter acessos ao material desaparecido.
Foi uma das primeiras mortes de muitas que vivemos … um ritual de passagem, os sonhos eu tinha guardado os originais em outro lugar, as letras eu tinha decorado todas, então reescrevi tudo. Só gibi, a história em quadrinhos, perdi tudo, os personagens, os traços, as histórias, eu desisti de criar outro gibi.
Escrever é reviver, quando eu li “Folhas de Relva” do Whitman, senti tantas coisas juntas, que foi difícil se segurar no corpo, foi uma sensação de alumbramento, um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar. Nossa vida é assim, conhecemos amigos, mestres, amores, sensações, histórias, loucuras, devaneios, infinidades que estavam ali escancaradas nas palavras organizadas pelo Whitman, eu renasci daquelas folhas e comecei a viver de novo e de novo e de novo, e escrever é isso também.
Mister, você tem alguns personagens, como o Frito Sampler, o Canga Louca… Qual foi o primeiro personagem que você inventou?
Mister Ormando, eu criei os primeiros personagens quando eu escrevi e desenhei o gibi, entre os 10 e 12 anos de idade. Eu passei minha infância no sítio e muitos personagens daquela época me inspiraram.
O Frito Sampler, nasceu quando começamos com a banda Jumbo Elektro, cada integrante tinha um personagem e o Frito veio de um sonho que eu tive onde um rapaz no fim do sonho me perguntou se eu era o Frito Sampler da banda Jumbo Elektro.
Em 2012 assisti no cinema o filme Holy Motors do Leo Carax e foi outro alumbramento delicioso, o filme me abriu para a multidimensionalidade, vivemos em várias dimensões e habitamos corpos diferentes na mesma dimensão. Às vezes encontramos nossos multidimensionais nas caminhadas da vida. Foi quando abri o corpo para novas entidades e sensações chegarem, veio o Jota Birinight, a Canga Louca, o Triste, o Pássaro Psicodélico da Floresta, alguns desses personagens participam do show “Vamos Pro Quarto” do disco lançado com a Cérebro Eletrônico.
O primeiro personagem foi o Frito, pra dar corpo a voz que cantava numa língua inexistente.
“Um aeroplano pousou em Marte, mas eu só queria é ficar à parte, sorrindo, distante, de fora, no escuro, minha lucidez nem me trouxe o futuro” (versos de Sérgio Sampaio em “Viajei de Trem”)?
Minha lucidez nem me trouxe o futuro, voltei a viver momentos de paz e serenidade na casa dos velhinhos que eu frequentava na infância, casas com cozinhas quietas, de ladrilhos, cheiro de café da tarde e uma bengala de pão em cima da mesa.
Minha lucidez nem me trouxe o futuro … dos dias que não passavam nunca … o tempo congelado nos bate papos infinitos empolgados dos mais velhos que passavam rápido por mim … e não queriam entrosar e afagar o tédio infinito que paira na alma da criança.
A criança, sentada na cozinha impecavelmente encerada, procurando passar o tempo, mas como? Ouvidos bem atentos, aprender a viver o tempo dos outros, distante, de lado, sorrindo ou não, de fora, dentro, no escuro dos dias.
Minha lucidez não me deixa olhar para lugar nenhum, busco um pouco de ternura na loucura para continuar pacificamente.