5 perguntas para Marianna Perna sobre Escrita e Magia
Marianna Perna é uma multiartista: poeta, performer, produtora, tradutora, pesquisadora e historiadora mestre em filosofia. Sua arte busca conexões com a ancestralidade, com o feminino e com a espiritualidade.
Em 2018, publicou o livro-disco “A Cerimônia de Todas as Vozes” pela editora Urutau em parceria com o selo Índigo Azul. Anteriormente, Marianna já havia publicado quatro livros de forma independente.
Em comemoração ao sabbat de Samhain, em 31 de outubro, a artista respondeu 5 perguntas sobre escrita e magia. Boa leitura 🙂
1. Como são para você os momentos em que sente a inspiração para escrever?
A escrita poética para mim gera um estado misto de razão e intuição, de saber exatamente o que está acontecendo e não fazer ideia nenhuma do que é aquilo. Sinto quase algo físico no meu corpo, de que algo quer “sair”, me dá uma espécie de coceira para escrever, algo bem peculiar, difícil de colocar em palavras a sensação.
Então começo a escrever, no ímpeto daquilo se expressar, buscando as palavras, como se eu soubesse o que é sem saber, um estado distorcido e diferente de consciência. Às vezes quase chego a desistir pois parece que não faço ideia do que seja o que quero escrever, não faz sentido, parece que vou ficar esperando aquilo tomar forma mas de repente vem, e sai exatamente algo que eu sentia que tinha que escrever mas não conhecia ainda, aquilo acaba de nascer mas já me é muito familiar; aquelas palavras, ou imagens criadas, me surpreendem, me causam um profundo espanto. Como se reconhecer em um antigo empoeirado espelho. Você passa alguns minutos ali tentando enxergar o que tem do outro lado, é difícil de entender aquelas formas, mas de repente as imagens adquirem sentido e você percebe que é você ali, você se reconhece de um jeito distorcido – e bonito.
Para mim, a escrita é muito esse processo de estranhamento – do mundo, de tudo e de si próprio – e ao mesmo tempo re-conhecimento – se reconhecer um outro, distante, atemporal, e também tão próximo, tão ali, tão acessível. Já tão antigo. Um estado além da dualidade cotidiana, em que estamos sempre oscilando entre passado e futuro, certo ou errado, presença ou ausência. A escrita me traz para um estado além de tudo isso, não por negar esses estados, mas porque os aceita e por isso pode olhar para eles de fora, como se fosse além da fronteira do comum e olhasse para tudo de um jeito mais amplo, ao mesmo tempo acolhedor e sábio.
2. Como é o seu processo de reunir textos em um livro, colocando eles numa ordem, criando sessões, escolhendo epígrafes, e etc?
Em relação a reunir textos em uma ordem, selecionar e organizar, para mim tudo vem de um jeito que me parece muito orgânico, fluido e intuitivo. Mas não que não tenha uma ordenação objetiva, uma decisão racional… refletindo agora sobre isso, me parece ser um misto de pensar e sentir, que a própria escrita também me exige. Desde a escrita até esse processo de organização acontece esse misto de razão e intuição.
Diria que é um processo de observação e de decantação dos escritos. O tempo agindo sobre aquilo que escrevi. Começo a perceber outras facetas, releio textos – raramente reescrevo algo, pois gosto de considerar que o poema é aquilo que me propus naquele momento, e isso me permite ler depois com um certo distanciamento, não fico pensando mais em como poderia ser, aceito ele como é e isso me faz bem, de ter esse desapego com a escrita. Então depois de ir criando outros pontos de vista sobre o que escrevi, por vezes relaciono, muitas vezes ainda sem querer, com outros textos ou algo que me ocorre a partir da leitura, do olhar de leitora. Pra mim, a ordenação e a atribuição de uma narrativa geralmente é um processo posterior, quase como um ato de relembrança. Ou uma associação livre. Raras vezes eu escrevo pensando “para onde” aquilo vai ou onde se encaixa. Mas também acredito que a escrita é uma ressonância de algo que estou vivendo no presente em algum nível, então naturalmente reflete esses processos e isso tende a criar uma coesão, um fluxo… Acho então que o elemento cronológico também acaba guiando os processos, mesmo como um dado involuntário.
Já com as epígrafes acredito que entra muito a intuição de algo de outra pessoa que “conecta” com aquilo que escrevi, não objetiva e diretamente, mas que eu sinto de um jeito parecido. Ou o autor/autora que sinto que “vai conectar”, e aí parto para procurar um trecho, ou então um trecho de algo que já me vem na memória. Ou ainda, uma vontade de realmente homenagear uma autora, como por exemplo Alejandra Pizarnik no meu livro “A cerimônia de todas as vozes” (2018), mas só depois de decidir que a epígrafe seria dela, eu fui investigar a obra, reler textos para encontrar qual passagem.
Eu gosto muito de fazer essas conexões com outros textos, meus e de outras pessoas, sentir essa convergência. Lembro, por exemplo, de progressivamente ir percebendo quatro poemas que escrevi como um espelhamento posterior da escrita de Hilda Hilst em mim. Já a lia há anos, mas acho que com o tempo sua poética foi decantando em mim a ponto de deixar registros no nível da linguagem, primeiro eram mais as imagens, a identificação, depois houve essa transmissão na própria escrita. Não que eu procurasse conscientemente isso, foi algo que aconteceu de maneira orgânica, porque eu como ser me transformei ao travar contato com a poética hilstiana, logo, minha escrita também se transformaria.
Assim, quis reunir esses quatro poemas que me transmitiam bastante essa transmutação em uma seção específica, como uma homenagem, e eles se tornaram parte do que chamo “Série Hilstianas”. Escolhi esse nome pela sonoridade que me causa agrado – “Hilstianas”, acho bonito. Quando, mais tarde, reuni os poemas para esse meu próximo livro no prelo (que homenageia a poeta Orides Fontela, e também possui epígrafes dela), sabia que essa série estaria nele. Como já havia decidido que cada seção do livro teria uma epígrafe própria – além das gerais, porque isso faz parte da proposta geral de um espelhamento-desdobramento de várias referências e vozes polifônicas compondo um entendimento caleidoscópico de si próprio – fui na busca de uma epígrafe de algum verso da Hilda para abrir a “Série Hilstianas”. Quando escrevi os poemas dessa série não tinha nenhuma obra ou poemas em específico em mente, foi apenas uma reverberação, um eco da voz hilstiana em mim. Portanto não havia um tema ou imagem a priori que as conectasse ou reunisse. Era mais uma sensação, um lugar interno, que eu acessava, que pra mim era hilstiano. Algo nostálgico, ancestral e meio futurista também. Decidido isso, abri seu livro de poesia completa e fui lendo aleatoriamente, marcando alguns versos que sentia ter a ver. Algo mais racional, prático. Encontrei algumas possibilidades. Mas daí de súbito me deparei com os versos “Casco de dor num caminho de sol/ E labareda, indivisível água/ Obrigando-me a ver o que tu vês” e me veio um arrebatamento total, um arrepio, daqueles que vão até a alma, e aí sim eu soube que esses eram os versos certos da epígrafe, que era “sobre isso”, mesmo sem ser “sobre isso”.
Concluo que é essa mistura de razão e intuição, pensar e sentir, que eu persigo e que a poesia me traz, me estimula e me exige, para a coisa ter a potência que eu almejo.
Em contrapartida, com a “Série dos espelhos” aconteceu algo diferente, que se mostrou no próprio processo da escrita, que eles estariam conectados e seriam uma série. Não foi algo por decantação e ação do tempo, mas da própria forma de chegada deles. Isso porque foram poemas curtos que brotaram de uma residência de dança, em meio a processos corporais investigativos. Estávamos em processo, nos investigando poeticamente com um espelho, e em dado momento eu “descolei” dali, isto é, meu olhar se deslocou, eu via tudo de fora e na hora já começaram a vir na mente as palavras, a narrativa. Fui tomada pelo estado de “coceira”, que eu comentei acima, eu peguei papel e caneta e foi saindo tudo de mim, enquanto continuava com o espelho, no processo. Não houve separação entre as coisas, entre viver e escrever, foi tudo no ato, tudo muito real e desnudo.
Pra mim é algo muito louco e maravilhoso conseguir atingir um estado de unicidade com algo, que faz com que palavras brotem como um produto intrínseco da experiência. Não uma representação ou racionalização da experiência, mas sendo a própria dimensão da experiência codificada em palavras. Sabendo, claro, que a experiência viva está muito além das palavras, mas a poesia é uma tentativa de aproximação, de registro e apreensão disso que é muito maior, que é a vida.
3. Nas suas palavras, o que é magia?
Para mim magia é a percepção de um estado de integração entre sujeito e objeto. Quando a pessoa consegue estar além de um estado mental racional e separado do que o rodeia e chega numa sintonia em que se sente parte de algo maior, ou daquilo que está acontecendo ali no momento. E não é algo difícil de atingir, acho que na verdade é muito simples e natural, mas o estado de mente racional no qual a gente opera é tão requisitado no nosso modus operandi capitalista, de trabalho e etc, que a gente fica condicionado e se esquece que há outras possibilidades de sentir, de percepção. Mas quando isso rola, esse afastamento da mente interna, daquela referência em relação a identidade/indivíduo, pra mim isso já é estar no domínio da magia. Pois percebemos que tudo está vivo e tudo se manifesta, nós podemos conversar com tudo e tudo conversa com nós. É uma coisa só. Existe escuta e abertura e também não-julgamento, e não causalidade…
Não vejo magia como um estado de ação e interferência no ambiente, nesse sentido de fazer algo vir a nosso favor, acho isso muito egocêntrico e prepotente. Me interessa entender esse fluxo, para onde ele vai, pra onde ele quer ir e eu vou junto, pois sou parte disso também. Uma dança na qual não há separação entre música e quem dança, é uma onda só. E é mágico pois dissolve as fronteiras, dissolve esse dado prévio que diz que eu sou isso e aquilo é o outro, é fora. Magia pra mim é perder a referência do que é dentro e fora. Perceber o fora dentro e o dentro fora. Essa convergência. E isso traz um espanto, um assombro muito maravilhoso, que é o que sinto por exemplo quando leio a obra de certas escritoras/escritores e eu me vejo ali, em cada letra que a pessoa escreveu. Fico boquiaberta: como pode eu estar ali “fora”, na palavras de outra pessoa?
Isso é mágico, é puro assombro, é pura alquimia, é um impossível que é real. Navegar entre mundos.
4. Na sua experiência, como a arte e a magia se conectam e se relacionam?
Por um lado, na parte receptiva, a arte pode ser a forma de acessarmos a magia, como isso que nos expande para além de nós mesmos e nos leva a nos reconhecer, não como afirmação narcísica no outro, mas de se descobrir outros/ outras também, descobrir novas facetas, e a partir disso chegar num espanto em se descobrir mais alargada, mais ampla do que até então se sabia. Então há na arte o domínio da magia nessa potência de transformar as pessoas, de nos expandirmos e dissolver lugares prévios a partir do contato com algo que nos toca especialmente.
E por outro lado, no âmbito ativo, criativo, a arte pode ser a ferramenta de expressão que procura dar conta da grandiosidade da experiência da vida. Ela nunca consegue, é claro, são tentativas, pois o infinito e o mistério são sempre da ordem do intraduzível. Mas sinto que uma arte que não tem essa pretensão de dar conta, de explicar, mas que quer apenas procura comunicar experiências, consegue ser um portal para que a pessoa sinta também. Para que acesse mundos, acesse os mistérios da vida e da morte, do milagre, da beleza da natureza, da profundeza do amor, do cosmos, da origem do universo, dentre tantas imagens e sentimentos que esse mergulho no sensível e no invisível podem suscitar. É um caminho infinito, e maravilhoso. E é maravilhoso poder acessar isso de maneiras e nuances diferentes através da obra/jornada de cada artista, já que cada uma/um é um universo particular.
5. Quais obras e autoras(es)/artistas te inspiram magicamente e artisticamente?
Muitas e muitos, algo que eu amo demais é me aproximar do universo de cada artista e ir percebendo como isso me afeta, o que traz e como eu vou me transformando a partir desse contato. Como adentrar uma sala de espelhos. E assim, sem uma justificação objetiva e racional, simplesmente porque me tocam de um jeito mágico, espelham verdades muito profundas em mim, com uma potência de desnudamento e escavação do ser, (e agora farei uma lista extensa mesmo, adoro listas rs!!)
Poderia citar o espanto que continuo tendo, mesmo após anos, ao ler Hilda Hilst, Antonin Artaud, Orides Fontela, Alejandra Pizarnik, Walt Whitman, Patti Smith, Fernando Pessoa, Sylvia Plath, Arthur Rimbaud, Allen Ginsberg, García Lorca, Audre Lorde, Clarice Lispector…
Ou ao ver os mundos mágicos criados por Frida Khalo, Remedios Varo, Eleonora Carrington, Georgia O’Keeffe…
E o deleite poético-sonoro ao escutar Belchior, Diamanda Gallás, Bjork, Thom Yorke, Leonard Cohen, Bob Dylan, Itamar Assumpção, Dorival Caymmi, John Lennon, Nick Cave, Joni Mitchell, Lhasa de Sela, Jim Morrison, Miles Davis, Nina Simone, Jean Ritchie, Laurie Anderson, PJ Harvey, Tiganá Santana, Mateus Aleluia, Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Istvan Sky, Daemonia Nymphe, Dead Can Dance, Olafur Arnalds, Lisa Gerrard, Ani Williams, Meredith Monk, Bach, Chopin, Erik Satie…
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Conheça também a Casa Urânia, espaço multiartístico & terapêutico criado e mantido por Marianna, em casauraniasp.com.br